Dr. Manuel Veiga - Ex-Ministro Da Cultura De Cabo Verde
Por Dr. Manuel Veiga
Com a recente remodelação governamental, pessoas de vários quadrantes se têm interrogado sobre a real motivação da minha demissão.
Num aspecto, quase todos estão de acordo: a demissão é mais uma distinção do que uma punição. Com efeito, para uns, o Governo não é o único lugar onde Manuel Veiga pode dar o que de melhor tem e sabe. Por isso, a sua saída poderá significar um novo desafio. Para outros, o Governo é um lugar transitório e é sempre salutar a passagem do testemunho, o que é bom para a democracia , mas também para incentivar novas ideias, novas dinâmicas e novas pragmáticas; há os que entendem que o menos bom nessa demissão é o timing escolhido, na medida em que tendo acontecido no seguimento do não reconhecimento , pela oposição parlamentar, do estatuto de oficialidade à língua caboverdiana, poderá isto significar uma derrota política para Manuel Veiga, já que ele tem sido um dos rostos mais visíveis, em Cabo Verde, em matéria da afirmação e valorização da língua caboverdiana (LCV); opiniões há, ainda, que acreditam que Manuel Veiga foi vítima de lobbies que temem ou que condenam a actual política governamental que vai no sentido da dignificação da LCV, a língua que mais e melhor corporiza, veicula e especifica a singularidade cultural e identitária do povo cabo verdiano.
É possível que todas essas asserções tenham algum fundo de verdade. Do meu ponto de vista, o meu ciclo, como Ministro da Cultura, chegou ao fim. Por isso, encaro a minha saída com tranquilidade, com normalidade. Duvido que algum interesse escuso tenha precipitado a minha saída. Mas, se porventura esse interesse chegou a existir e estiver ligado à negação da conquista da dignidade para a língua do nosso quotidiano ambiental e identitário, então teria que sentir-me recompensado com esta saída. Na verdade, o soldado que morre na frente de batalha, em defesa da pátria, se não for considerado um herói, deve, pelo menos ser tido como um patriota.
Os meus críticos têm afirmado que, como Ministro da Cultura, dei atenção quase que exclusivamente ao ALUPEC e à problemática da LCV. Acontece que nos cinco anos e quatro meses que estive no elenco governamental, apenas contribuí para aprovação das Linhas Estratégicas para a Afirmação e Valorização da Língua Caboverdiana (Resolução 48/2005); dei ainda o meu contributo para a aprovação do Alfabeto Caboverdiano (Decreto 8/2009); a institucionalização do Prémio Pedro Cardoso, para incentivar a criação em LCV, contou também com o meu impulso e aprovação.
Devo confessar que no meu consulado, como Ministro da Cultura, as questões linguísticas constituem uma gota de água no oceano imenso das muitas outras acções levadas a cabo. Para a avaliação dos leitores, aqui fica o registo de algumas das importantes actividades culturais do meu consulado e que não podem ser substimadas:
• A Cidade Velha, metáfora de Cabo Verde, alcandorou-se ao estatuto de Património da Humanidade. Trata-se de um dos acontecimentos mais importantes da nossa história recente, na medida em que esse estatuto significa o reconhecimento internacional da nossa crioulidade, da nossa antropologia e da nossa história. Nós que éramos um ponto, quase que invisível, no mapa, hoje somos, cada vez mais, uma referência nos palcos da globalização. E o estatuto de património mundial vai densificar e optimizar a imagem de Cabo Verde.
• No domínio da recuperação do património histórico, nunca se fez tanto em Cabo Verde, com a intervenção ou a comparticipação do Governo a que pertenci. Os exemplos abundam: a recuperação de várias unidades hitóricas na Cidade Velha; a recuperação de algumas Igrejas, como a de Nossa Senhora da Conceição, no Fogo; as Igrejas de Nossa Senhora do Rosário da Ribeira Grande de Santo Antão e da Ribeira Brava, em S.Nicolau; a Capela de Trindade; a Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Assomada; a recuperação, em curso, do ex-Orfanato de S.Nicolau, para a instalação de uma Casa de Cultura; a recuperação, já na fase final, de uma Casa de Morgado, em Chã de Tanque, para Museu da Tabanca; a recuperação, já na fase final, da Alfândega Velha da Boavista, para Centro Cultural; a recuperação, já na fase final, da Capitania Velha (réplica da Torre de Belém), no Mindelo, possivelmente para a instalação de uma galeria de música; a recuperação do Campo de Concentração do Tarrafal para Museu da Resistência e da Liberdade. Ainda no domínio do património, foram criados o Museu da Arqueologia e o da Arte Tradicional. Deixo ainda inscrita no Orçamento de Estado, para 2010, uma verba de alguns milhares de contos para amortizar a compra da casa onde viveu Amilcar Cabral e algum terreno adjacente, para a criação de um grande compexo cultural.
• No Domínio de Planos Estratégicos, deixo em curso, com financiamento garantido, o Plano Estratégico para o Desenvolvimento Cultural e o Plano Estratégico para o Desenvolvimento da Economia da Cultura, no seguimento das recomendações do Fórum sobre a Economia da Cultura, realizado em 2007.
• No Domínio da Preparação da Cultura para Novos Desafios, foi recentemente aprovada a nova Orgânica do Ministério da Cultura onde as grandes novidades são: o surgimento de uma Direcção Nacional da Cultura para propor estratégias culturais e fiscalizar a sua implementação, certificar produtos culturais, reconhecer quem é quem na arte, propor medidas legislativas e incentivos, como ainda coordenar a formação na área da cultura. Na Orgânica figura ainda a criação da Agência de Promoção Cultural para dinamizar e valorizar não só os aspectos simbólicos e identitários da nossa cultura, mas também preparar a cultura para o mercado da arte. A Orgânica prevê ainda a fusão do Instituto do Arquivo Histórico Nacional e o da Biblioteca Nacional. Pela primeira vez, a cultura passa a ter quatro Delegações Regionais, uma em S.Vicente, devendo cobrir as ilhas de S.Nicolau e Santo Antão; outra no Sal, devendo cobrir a Boavista; outra no Fogo, cobrindo a Brava; e outra em Assomada, cobrindo todos os Concelhos do interior de Santiago e Maio.
• No Domínio da Investigação, foram publicadas importantes obras de referência como: a História Concisa de Cabo Verde; Cabo Verde – 30 Anos de Cultura; Kab Verd Band; O Ano Mágico de 2006 – Olhares Restrospectivos sobre a História e a Cultura Caboverdianas; A Construção da Identidade Nacional; Em Busca da Nação; A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) – UM Contributo para a História da Educaçção; Africanidades versus Europeismos – Pelejas Culturais e Educacionais em Cabo Verde; In Memória de João Lopes; Cabo Verde e as Artes Plásticas – Percurso & Perspectiva; Cartografia Antiga de Cabo Verde. Também no prelo se encontram, com financiamento garantido, as Actas do Simpósio Internacional sobre o Cinquentenário da Revista Claridade - 1986; as Actas do Simpósio Internacional sobre a Geração Claridosa Centenária – 2007; Claridade na Palavra dos Outros, uma colectânea de textos espalhados em jornais, revistas ou comunicações; Textos Avulsos de Baltasar Lopes; Testemunhos sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, em dois volumes. Em curso um estudo sobre a olaria tradicional e um outro sobre a cimboa.
• No Domínio dos Incentivos: Aumento do montante do Grande Prémio Cidade Velha para dois milhões de escudos; criação de vários prémios, como Pantera – Descoberta de Talento Jovem, no montante global de um milhão e trezentos mil escudos; Prémio Pedro Cardoso, no montante de um milhão e duzentos mil escudos, no domínio da valorização da língua caboverdiana. Ainda a institucionalização de Bolsa de Criação Cultural, no montante de um milhão de escudos. Foram assinados vários protocolos nas áreas do teatro, da dança, do audiovisual, da formação e da criação de infraestruturas culturais. Um grande número de artistas contou com apoio para digressões, animação cultural, gravação de CDs e edição de livros. O carnaval e as festas de romaria e dos santos populares têm contado com apoios do Ministério da Cultura. Alguns artistas foram sujeitos de homenagem, em vida. O Centro Cultural Ildo Lobo, o Centro Cultural do Mindelo, o Centro Cultural Norberto Tavares e a Biblioteca Nacional mantiveram as portas sempre abertas para exposições, encontros, tertúlias, conferências, espectáculos, aterliers de arte. Note-se que a Escola de Música «Cimboa», do Palácio da Cultura Ildo Lobo, tem à volta de 250 inscritos.
• No Domínio das Tradições Orais, foram organizados vários trabalhos para divulgação, os quais contaram com apoio de patrocinadores para publicação.
• No Domínio Arquivístico, para além da catalogação e recuperação de um leque considerável de documentos, procedeu-se à microfilmagem e digitalização de muitos e variados documentos; foram assinados alguns protocolos com instituições do Estado para a recuperação documental; foram publicadas várias obras de investigação e realizadas várias exposições temáticas em vários Concelhos do País.
• No Domínio do Livro, para além da edição de obras de referências, já mencionadas, há um número considerável de títulos editados. A Biblioteca Nacional acolhe uma média diária de 250 utentes, nos períodos escolares. As feiras do livro, em todos os Concelhos do País, têm sido um prática sistemática e, mesmo no estrangeiro, foram realizadas feiras nos EUA, em Portugal e no Brasil.
• No Domínio da Legislação, para além dos diplomas já referidos no sector da valorização da língua cabovediana, há que referir o diploma da entrada em execução do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – mediando um período experimental de seis anos; a classificação de diversas unidades do património histórico da Cidade Velha; a aprovação de várias convenções culturais; a institucionalização dos prémios já referidos; a aprovação de um novo Código de Direitos de Autor.
• Colóquios, Fóruns, Mesas-redondas, Efemérides de carácter nacional: Em 2005, o Colóquio Internacional sobre os Estudos Crioulos, em colaboração com o Comité Internacional de Estudos Crioulos, tendo estado presentes mais de 200 especialistas de espaços crioulos ou de universidades onde se estuda um determinado crioulo; em 2007, o Fórum sobre a Economia da Cultura no Debate da Mudança; em 2007, ainda, o Colóquio sobre Cidade Velha – O Futuro do Passado; em 2008, o Colóquio Internacional sobre a Geração Claridosa Centenária; em 2008, ainda, Mesa-Redonda para avaliação do ALUPEC; em 2009, e em colaboração com as Fundações Amílcar Cabral e Mário Soares, o Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal; ainda em 2009, Mesa-Redonda sobre Vida e Obra de António Aurélio Gonçalves. Para 2010, foram programados um Colóquio Internacional sobre Cidade Velha e a Cultura Afro – Mundo: O Futuro do Passado II; uma Mesa – Redonda sobre Cultura e Emigração sob o signo das Referências Culturais das segundas gerações de emigrantes caboverdianos; uma outra Mesa – Redonda sobre as Revoltas Sociais em Cabo Verde, em saudação ao centenário da Revolta de Ribeirão Manuel. O Ministério da Cultura presidiu a Comissão Executiva das comemorações do 30º aniversário da Independência nacional. O Dia Nacional da Cultura, celebrado todos os anos a 18 de Outubro, tem sido festejado em 2006 sob o signo do o seu patrono Eugénio Tavares; em 2007, sob o signo da Claridade; em 2008 sob o signo da música; em 2009, sob o signo das tradições. Tudo indicava que em 2010 seria sob o signo da História.
• No Domínio das Homenagens, vários artistas e criadores foram sujeitos de homenagens pelo Ministério da Cultura. Porém, a homenagem maior que o Governo a que Manuel Veiga pertenceu pretende prestar, no âmbito dos 35 anos da Independência Nacional e dos 550 anos da Descoberta de Cabo Verde tem por sujeito o povo caboverdiano que sempre lutou e sempre venceu: no período escravocrata, no regime colonial, na luta de libertação, nos períodos de estiagem e de fome, durante a emigração forçada, na construção e afirmação do Estado de direito, na construção da boa governança, na consolidação da qualidade de vida e do ambiente. O símbolo da homenagem é um Monumento à Liberdade, cujo concurso foi lançado, sendo Domingos Luisa o artista ganhador, tendo, entre outros, os seguintes termos de referência: «o Monumento deve retratar a história e vivência do povo caboverdiano ao longo do tempo, com referência às várias fases dessa história: a colonização, a escravatura, a emigração forçada, a fome, a estiagem, a luta contra o analfabetismo, a luta armada a independência nacional, a reconstrução do País, a luta para o desenvolvimento, progresso e liberdade. Deve ser um ícone grandioso, à altura da simbologia que representa, isto é, a de uma história sofrida, heróica, de dor e de amor, construída e em projecção. O mesmo deve poder retratar essa história, congregando todos os caboverdianos, de todos os tempos, de todas as idades, de todas as confissões religiosas, de todas as sensibilidades políticas. Monumento deve ser o rosto da Nação Global Caboverdiana».
• Distinções Recebidas – Curiosamente, o ano de 2009 foi o ano em que as críticas foram mais abundantes, mas também foi o ano em que o Ministério da Cultura recebeu mais distinções: O Presidente da República condecorou o Ministro da Cultura com a medalha do Vulcão, pelo contributo dado à elevação da Cidade Velha a Património da Humanidade; o Presidente do IIPC e o Coordenador Científico do dossier de candidatura foram também condecorados com a Medalha de Mérito, pelo senhor PR, pelas mesmas razões; o Governo distinguiu o IIPC, por ocasião do 3º aniversário da VII Legislatura; a Câmara de Ribeira Grande de Santiago distinguiu o Ministro da Cultura como Cidadão Honorário, pelo valioso contributo dado na promoção e valorização da Cidade Velha; o Ministério da Cultura foi distinguido pela Tiver, como um dos rostos de Cabo Verde de sucesso; o Ministro da Cultura foi distinguido pela Associação de Tradução da Bíblia, pelo contributo à causa do crioulo; o conjunto musical Ferro Gaita e a Escola Secundária Fulgêncio Tavares distinguiram o Ministério da Cultura pelos incentivos que tem dado à cultura.
• Em conclusão: Por tudo o que ficou dito, é evidente que não estive no Governo apenas para aquecer a cadeira do poder. Com poucos recursos, realizei muitas coisas boas. Saio contente de ter realizado o que era possível, dentro dos constrangimentos existentes. Porém, saio insatisfeito por ter sido incompreendido por alguns sectores e por não ter podido satisfazer a grande expectativa do mundo artístico que é do tamanho do mundo, quando o orçamento da Cultura não chega a 1% do OE. Apesar de tudo, saio sem mágoa, sem ressentimento, com a consciência tranquila de ter procurado fazer o melhor, com responsabilidade, entusiasmo e amor.
Na Óra di bai, queria fazer três agradecimentos: à minha família, que sempre me apoiou e que representa a fonte de grande parte das minhas energias; aos meus colaboradores, que acreditaram em mim e juntos colocámos a nossa pedra no edifício cultural de Cabo Verde; ao Senhor Primeiro Ministro, José Maria Neves, que, em 2006, encontrando-me em recuperação de uma doença grave, não aceitou o meu pedido de demissão, porque acreditava que tinha muito ainda para dar a Cabo Verde, na qualidade de seu colaborador. E eu, que vesti a camisola da cultura para nunca mais tirar, a partir da confiança renovada do senhor PM, e do encorajamento que recebi de vários amigos, sobretudo do Senhor Presidente da República, comecei a sentir que a camisola da cultura se tinha transformado na minha pele, talvês mesmo, no meu próprio sangue.
Por isso, tenho razão mais que suficiente para dizer, hoje, que a cultura curou-me, que ela restituiu-me a vida. Então, o meu reconhecimento maior vai para o Povo de Cabo Verde que me legou uma língua e uma cultura que tanto prezo, e de que tanto me orgulho.
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